Hoje, 3 de outubro, se recorda o dia em que a Europa acendeu o sinal amarelo. Uma pequena ilha no meio do Mediterrâneo chamada Lampedusa, no extremo sul do continente, foi palco de uma grande tragédia que, quatro anos depois, tornou-se símbolo do drama enfrentado por milhares de pessoas que se arriscam na rota de imigração do mediterrâneo central todos os dias.
Talvez você que esteja lendo esse texto jamais ouviu falar sobre essa pequena ilha ou mesmo não faça menor ideia das dificuldades vividas diariamente nas águas mediterrâneas. Sua “ignorância” é justificada: o que os olhos não vêem, o coração não sente.
Rotas de imigração clandestina com o objetivo de chegar à Europa com pessoas vindas do Oriente Médio e África existem há muitos anos, assim como tragédias humanitárias de igual duração e dolorosas consequências. Contudo, parafraseando Max Gonzaga, “toda tragédia só me importa quando bate à minha porta” e, justamente por isso, o dia 3 de outubro de 2013 é, infelizmente, lembrado, pois marca o dia em que a Europa não conseguiu mais jogar a sujeira pra baixo do tapete.
Para ilustrar, veja os pequenos vídeos abaixo:
Um pesqueiro à deriva no Mediterrâneo abarrotado de pessoas
O barco, como tantos outros, era um velho pesqueiro de 20 metros “adaptado” para o transporte de pessoas que partiu do porto de Misurata, na Líbia, 2 dias antes. A bordo cerca de 543 imigrantes/refugiados vindos da Eritreia, antiga colônia italiana que, atualmente, possui o 179º posto de Índice de desenvolvimento humano (entre 193 países avaliados) e que, desde 1998 vive intensos combates internos, sobretudo nas áreas de fronteira com a Etiópia.
Durante a noite, meia milha (cerca 800m) antes de chegar à uma pequena ilhota próxima à Lampedusa, com o objetivo de chamar atenção de outros barcos que por ali passavam, uma toalha foi embebida de gasolina e ateada fogo. À deriva, tal situação provocou o pânico dos que ali estavam e, pouco após, com o movimento das pessoas e o fogo descontrolado, o naufrágio era inevitável, vindo a ocorrer às 5h da manha, conforme demonstra o relógio em um dos corpos resgatados.
No início da manha seguinte, alguns pesqueiros e barcos civis alertaram as autoridades ao observarem corpos no mar e algumas pessoas que ainda conseguiam manterem-se vivas. A recuperação dos corpos durou dias, muitos deles presos ao barco a 46 metros de profundidade, pois viajavam nos andares inferiores, como demonstra o vídeo abaixo:
Números da tragédia de Lampedusa
368 mortes, dentre as quais 9 crianças, e 20 desaparecidos, todas de pessoas que buscavam liberdade e segurança. Segundo relatos dos 155 sobreviventes, dois barcos (com descrição parecida aos utilizados pela Guarda Costeira Italiana) se aproximaram pouco antes e não prestaram socorro. Esse teria sido o motivo do fogo, buscando chamar atenção.
O “motorista” do barco, Khaled Bensalam, tunisino de 35 anos, tratado como traficante, foi condenado a 18 anos de prisão por homicídio culposo enquanto, há pouco tempo, a justiça italiana encerrou o inquérito sobre omissão de socorro, considerando-o “inconclusivo”.
Desde então, nos últimos anos, segundo dados da IOM (International Organization for Migrants), mais 15.062[1] pessoas perderam suas vidas na rota mediterrânea central, o que nos conduz ao terrível número de 10,3 vidas/dia (vale lembrar que esses números são previsões, dado que não existe uma contagem do número de partidas nem mesmo todos os corpos são resgatados).
Algo mudou?
Muito mudou a partir dessa tragédia, tanto a nível italiano como a nível europeu, com, por exemplo, o incremento das operações de busca e salvamento no mediterrâneo. Contudo, o fluxo migratório continua alto e contínuo. Apenas em 2017, segundo o Ministério do Interior, 105.806 pessoas chegaram aos portos italianos.[2]
O dia 3 de outubro ainda é, portanto, uma ferida dolorosa e dramaticamente aberta no coração da Europa, ou, como caracterizou Sergio Mattarella, presidente italiano, “um símbolo de humanidade traída”, continente esse que ainda “gira em torno ao próprio rabo” no tocante à acolhida e integração, perdido em meio a preconceitos e racismos inaceitáveis.
Lampedusa, não pelas suas belas paisagens mediterrâneas, mas por uma tragédia sem precedentes, agora é conhecida como “a porta da Europa”, porta essa que, pra muitos representa a própria vida e, para 368 seres humanos no dia 3 de outubro de 2013, estava trancada.

[1] Dados de 2 de outubro de 2017, no link: http://www.interno.gov.it/sites/default/files/cruscotto_giornaliero_2-10-2017.pdf
[2] Para mais informações sobre números, acessar o site do projetos Missing Migrants: http://missingmigrants.iom.int/