Hoje, 20 de junho, se recorda o Dia Mundial do Refugiado e, de onde vos escrevo, os motivos para celebrar são poucos. Havia preparado um texto formal (que sairá em breve) com os novos dados recém-publicados pelo ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – que comprovam uma tendência massacrante: nunca da história da humanidade tivemos tantos homens, mulheres e crianças obrigados a fugir e deixar o próprio país para escapar de guerras, violências, perseguições, fome, doenças e pobreza. Mais precisamente, cerca de 70 milhões de pessoas atualmente vivem “em fuga”, em situações nas quais, na maioria das vezes, não possuem nem o direito de ter direitos.
Havia pensado em um texto de protesto, expondo os absurdos que diversos governos (inclusive e sobretudo o Italiano) estão fazendo com essas pessoas. Por aqui, um novo decreto, de outubro de 2018, tem tornado a vida dos refugiados cada vez mais difícil, levando-os à quase completa marginalidade. Pensei, também, num texto expondo os obscenos acordos bilaterais entre Itália e grupos beligerantes Líbicos, nos quais dinheiro público italiano financia uma guerra da outra parte do mediterrâneo e obriga milhares de refugiados a viver em situações de tortura, estupros, venda de órgãos e de pessoas. Afinal, jogar a poeira pra baixo do tapete é a solução sempre mais fácil, já que toda tragédia só me importa quando bate na minha porta.
Havia pensado em um texto contando a minha experiência no porto nestes 2 anos e meio com a Cruz Vermelha, afinal, grande parte dos muitos refugiados que eu vi passaram por mim através dos desembarques em Augusta/Sicília. Havia pensado, talvez, em um texto sobre projetos de integração que deram certo. Talvez dar exemplos de meninos e meninas que, muita embora tudo fosse contrário, conseguiram integrar e agora conseguem sobreviver, trabalham, estudam e se sentem seguros.
Pensei inúmeros caminhos, consciente que nenhum deles expressaria a totalidade do que o dia de hoje representa.
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Decidi, então, que neste 20 de junho, faria algo simples: daria nome aos bois! Sim, porque muito embora a realidade insista em tratar essas pessoas como números, esses milhões de refugiados que vemos nos telejornais são milhões de “Um’s”: são Amadous, Mohameds, Mariam; São pais, mães, filhos, irmãos, netos, sobrinhos, amigos; São padeiros, vendedores, estudantes, pedreiros, donas de casa; São e continuarão sendo, ainda que tudo vá contra, SERES HUMANOS, com rosto, história, nome, sobrenome e sonhos.
Nesses dois anos e meio que estou na Sicília me aproximei e trabalhei muito com um centro de acolhida para menores não-acompanhados chamado (curiosamente) “Casa Freedom”. Ali pude notar que membros da equipe de trabalho cuidavam dos meninos com algo a mais: eles não eram o Desembarque número “28291-A de 17 de dezembro”. Eles eram tratados como pessoas e todos, sem exceção, ali trabalhavam com amor e paixão. Espero um dia escrever mais sobre tudo de bonito que pudemos fazer pelos meninos ali em Casa Freedom.
Dois dias atrás, o centro foi fechado, colocado contra as cordas pelas novas políticas de imigração acima citadas e que não se importam com os seres humanos ali presentes. Os meninos tinham três opções: serem transferidos para outros centros longe de onde já haviam minimamente reconstruído a vida, encontrado um trabalho e uma escola; recusarem à acolhida e ir para a rua, deixados à própria sorte. Muitos escolhiam a terceira (e mais perigosa) estrada: escapar para outros países (como França e Alemanha), nos quais ainda reside uma falsa ilusão de trabalho farto, assumindo assim a clandestinidade. Casa Freedom já hospedou mais de 150 menores e, atualmente, não contava com mais de 30.
Na noite do seu fechamento, eu e outro voluntário tivemos a oportunidade de retornar ali, na surdina da noite. Encontramos 8 meninos que decidiram ficar, ainda que as ordens para seu fechamento eram claras. Desses, 4 meninos já havíamos contatado dizendo que os auxiliaríamos para não ir para a rua. Meninos como todos os outros, com histórias de sofrimento e tristeza, mas com muita força de vontade e resiliência. Comemos uma última refeição naquele mesmo espaço no qual havíamos feito diversas atividades com música e dança, onde tínhamos ensinado italiano para inúmeras crianças refugiadas e que, naquele momento, era o símbolo da desumanidade.
A difícil tarefa de escolher a respeito da vida dos outros
Muitos precisavam e mereciam. Não tenho dúvida. Contudo, fizemos o que estávamos ao nosso alcance. Não pensem que tem sido fácil dormir nos últimos dias: a crise moral pelo desejo de fazer mais aperta, a “culpa” ética de decidir pela vida de outros arrebata, a escolha de quem tem o direito e quem não tem consome, a decisão de quem terá a chance de continuar e pra que a viagem vai recomeçar inquieta. São, atualmente, 70 milhões de Amadous, Mohameds e Mariams. 70 milhões de histórias, de sonhos e de olhares. 70 milhões de Um’s.
E se você chegou até aqui, deve estar se perguntando: Cara, e agora?
Bom, eu te respondo com outras perguntas, adaptadas de Michel Quoist:
O que seria da música sem cada nota? Do livro sem cada página? Da página sem cada letra? Do rio sem cada gota? Do mar sem cada rio? E se a pedra dissesse: “não é uma pedra que possa levantar um muro”, não haveria casa. Se o homem dissesse: “não é um gesto de amor que pode salvar a humanidade”, nunca haveria justiça ou paz, dignidade ou felicidade. Como a sinfonia precisa de cada nota, como o livro precisa de cada palavra, como a casa precisa de cada pedra, como o oceano precisa de cada gota de água, como a colheita precisa de cada grão, toda a humanidade precisa de ti, do teu pouco, daquilo que acha ser pouco.
O sorriso de um refugiados: pagamento maior não há
O que me motiva, a cada dia, e em especial no dia de hoje, 20 de junho, é ter a consciência que o mundo é mudado nas pequenas atitudes de pequenas pessoas em pequenos lugares (parafraseando Galeano). Ainda me motiva saber que posso não ter transformado o mundo, mas 4 mundinhos hoje ainda dormem com esperança no futuro.
E ahh, os nomes: Karfala, Saliou, Komara e Ubaydul! Para eles, o meu pouco com todo amor. Fique com esses sorrisos que tivemos em nossa mesa e pense: Qual é o pouco que eu posso fazer?
Sei que não dá pra mudar o começo. Mas se a gente quiser, dá pra mudar o final.
Obrigado por despertar a sensibilidade que às vezes, parece desaparecer pela acomodação anima vida normótica (normalmente neurótica). Amar a humanidade é mais fácil que as pessoas concretas.
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